Gorki e as ruínas, contos sobre a miséria

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É incrível como um calhamaço de páginas amareladas pode nos fazer feliz às vezes. Quando peguei o livro “Máximo Gorki – Os Melhores Contos”, fiquei encarando-o por um tempo antes de começar a leitura. Passei os olhos pelo prefácio do jornalista e tradutor Herculano Pires e, convencido, fui para os contos: “Konovalov”, “Certo Dia de Outono”, “Caim e Artem”, “O Aleijado”, “O Pomo da Discórdia”, “O Sapateiro” e “O Avô e o Netinho”.

Das características gerais que pude notar em cada história, destaca-se a atenção aos personagens. Gorki adora tratar das minúcias: um bigode que entra mastigado pela boca, um velho cujo rosto cansado assemelha-se à areia da praia, o porte robusto de um andarilho-don-juan e, em contraponto, a magreza de um vendedor de ninharias.

Por essa riqueza de detalhes, suas histórias são extensas. A menor delas, “O Avô e o Netinho”, tem 25 páginas. Debruçado em reproduções de trejeitos, características físicas, maneiras de falar, entre outras idiossincrasias, o escritor consegue nos aproximar de cada criatura de maneira eficiente.

Mas os contos não teriam o mesmo impacto sem as muitas descrições da natureza, a maioria das histórias ocorre nas proximidades do mar. Algo chamava a atenção de Gorki, ali, entre as ondas e o horizonte, e embora isso não seja um recurso gratuito, por vezes acaba tornando o texto cansativo. Se no Expressionismo Alemão o cenário buscava completar os tipos, expandindo-os em catedrais tortas ou resignando-os na sombra de suas angústias, nos contos do escritor russo ocorre algo parecido. As variações do ambiente parecem acompanhar o rumo das histórias: a calmaria marítima reflete um olhar terno entre pai e filho, ondas violentas acompanham os passos de uma mulher perdida, a neve aperta o cerco em torno de dois invasores e, por fim, uma tempestade chega às vias de fato e acaba por matar um ancião. Entre outras coisas, o tradutor Leonid Kipman trouxe à tona uma palavra que há muito eu não via: “marulho” – o vaivém das águas do mar.

Na labuta com a vida, sobrevivendo ao inverno, às doenças, ao descaso do governo e à sua própria natureza violenta – característica presente em todos os contos – os personagens de Gorki retratam os pobres: um sapateiro brigão, uma prostituta que nada na lama, um garotinho que coleciona insetos como se fossem brinquedos e homens que espancam suas esposas de forma corriqueira. Como descreve Herculano Pires, “(…) flagrantes da vida do povo, com suas dores, suas misérias, suas ambições e seus sonhos”.

No caso de “O Sapateiro”, em que um marido frustrado espanca a esposa, apresenta-se a diluição e o auge de uma mulher que, física e moralmente abalada, consegue vingar-se ao fazer o marido sucumbir ao seu próprio ódio. A situação da mulher nos contos de Gorki – no contexto da Rússia czarista – é de submissão, humilhação e fragilidade. São menos do que nada. Porém, há um cuidado; percebe-se que autor – encarnado como intelectual entre as massas – faz uma espécie de análise da situação feminina. Através de diálogos de peões, bêbados e comerciantes que dizem impropérios sobre suas companheiras e humilham-nas em público, Gorki retrata de forma realista o tratamento dado à mulher no período.

Em outro aspecto, assim como a maioria de seus personagens, o escritor também é um artesão, um artífice do texto – não no sentido estético – mas na forma como aproveita cada passagem para aproximar o leitor da história e até mesmo ser amigo de seus personagens. Menos floreios e mais imersão. Ele mesmo, talvez em momento de êxtase, não se aguenta e acaba por invadir pessoalmente suas histórias, como acontece em “O Sapateiro”.

A bebida também é presença garantida nos contos – das tabernas, como parece óbvio, às casas de família. A vodca, além de ser o aguardente mais querido, é utilizada de várias formas, como remédio – ao ser esfregada no corpo de um homem espancado – e como alimento, fazendo os miseráveis esquecerem o pão. No conto “Konovalov” fica claro que – naquela Rússia – existia um período para os homens – assim como é o de migração para os pássaros ou do cio para as cadelas – em que a vida pesava demais e corria-se para a bebedeira. Isso fica evidente em um dos diálogos, onde o chefe pergunta pelo funcionário e, ao saber que ele está na taberna, conclui com naturalidade: “Ah, está bem, deu-lhe a bebedeira, não foi?”. E vida que segue. É só a bebedeira.

No geral, a estrutura dos contos flui a partir da dualidade entre o pensamento genialmente rude do populacho e as análises (e julgamentos) de personagens mais intelectualizados, em sua maioria inspirados no próprio escritor. Mas isso não soa nem um pouco falso, pois Gorki realmente veio das camadas humildes da Rússia. Ou seja, utilizava isso como substância para sua ficção, ficando o tempo todo ali, medindo e examinando as relações sociais.

Citado por muitos críticos literários como escritor menor ou irregular, Gorki deixa claro nos contos desta primeira fase que seu ideal – ao menos no início – era apenas retratar as classes desfavorecidas, deixando-nos um legado terno das experiências e traumas da população achacada nos centros urbanos ou no campo – e não ser visto como um gênio das letras. Pode-se dizer que, para Gorki, a máxima de hoje – deliciosamente popular – é válida: arte de cu é rola.

(Rodrigues)

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